Xuxa em Sonho de Menina foi um filme para crianças. A personagem vivida
pela rainha dos baixinhos era uma professora de matemática que sonhava em ser
atriz. Sem grandes expectativas de roteiro, o filme combinou fantasia com
relances biográficos de Xuxa, uma mulher também a meio caminho entre a
realidade e a ficção. Ao contar o que viu na vida, Xuxa apresentou-se como
personagem de um roteiro documental. Xuxa em Pesadelo de Menina poderia ser o
título de seu depoimento solitário à televisão. A melancólica trilha musical só
foi interrompida quando a personagem cedeu o lugar à mulher em aflição pela
memória do passado. Xuxa enfrentou a câmera e surpreendeu a audiência ao
anunciar Eu fui abusada. Até os 13 anos, Xuxa foi vítima de abuso sexual de
homens de seu convívio doméstico - amigos, professores e parentes. Esse foi um
segredo não previsto pelo roteiro do sonho, mas sentido pela ferida do real.
A história da rainha se transformou em um roteiro de conto de fadas,
interrompido nos últimos minutos de depoimento pelo segredo da violência. Uma
adolescente suburbana e bonita é descoberta em um trem; em poucos meses, é uma
imagem pública. Ainda jovem, casou-se com o rei do futebol, namorou o príncipe
da velocidade, transformou-se na rainha dos baixinhos.
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Como em um enredo de matrimônio arranjado
entre famílias samurais, porém adaptado à realidade das celebridades sem fronteiras,
o agente do omiai entre Michael Jackson e Xuxa foi o assessor do imperador da
terra do nunca. Não houve casamento da rainha com o imperador, apesar do amor
em comum pelos bichos e pelas crianças. Xuxa se apresentou ambiguamente como
uma mulher independente, porém solitária. Por que não consigo me casar? Deve
ter uma explicação. A resposta, segundo ela, seria a ferida do abuso sexual
sofrido na infância.
A casa é um espaço de risco para as meninas.
Elas são vítimas do desejo obsceno dos homens, sejam eles pais, amigos ou
vizinhos. As meninas emudecem-se diante do assédio - temem os agressores pela
força com que eles as ameaçam, sentem vergonha de suas mães, imaginam-se
culpadas pelo sexo que carregam entre as pernas infantis. As mães são figuras
que compõem um binômio com essas meninas - poucas são as capazes de reagir ou
denunciar o agressor. Com suas filhas, elas são parte de uma arquitetura
perversa da violência: temem os agressores pela sedução ou pela força. Xuxa não
contou à mãe ou aos irmãos a violência que sofria, algo comum às meninas muito
jovens assediadas por adultos. Certamente há histórias de mães que se lançam
contra os agressores, mulheres que ignoram a hegemonia patriarcal que as une às
filhas como corpos disponíveis ao desejo masculino.
Mas essas são histórias de exceção, seja
porque o segredo das meninas é impenetrável, seja porque as mulheres também se
submetem à ordem de silêncio dos agressores.
A escola e o hospital são dois espaços que
provocam a hegemonia do medo e do silêncio. Por sinais muito diversos,
professoras, psicólogas e assistentes sociais são as principais vozes de
denúncia contra a violência e o abuso infantis. Na escola, a menina se
transforma. A metamorfose imposta pela violência denuncia-se por comportamentos
padronizados ao olhar atento das professoras - desde expressões afetivas como a
tristeza até indicadores objetivos da desordem mental, como a queda no
rendimento escolar. No hospital, a menina se demonstra. A metamorfose está no
corpo e não só nos afetos perturbados. Menarca, gravidez e abuso são
descobertos como sequências de um ato perverso que se estende no tempo: meninas
pré-púberes são violadas e seus corpos em gestação escancaram um longo regime
de violência silenciado pela casa. É a gravidez que aponta a violência e
denuncia que o agressor não é um estrangeiro, mas um patriarca do regime
doméstico de poder.
O segredo de Xuxa escapou aos olhares atentos
das professoras, e o abuso que sofria talvez não tenha se consumado em ato
sexual, o que evitou o risco da gravidez infantil. Xuxa não foi ouvida em seu
silêncio por nenhuma das instituições capazes de protegê-la; ela foi uma
sobrevivente do abuso sexual infantil. Hoje, causa política e biografia se
confundem em uma mulher madura, rica e independente que escolhe a câmera como
interlocutora do que só se imaginaria como possível na esfera do fantástico dos
contos de fada. Mas não é. Xuxa é uma rainha de carne e osso, diferente da
bailarina da música infantil.
Como as outras meninas, ela teve unha encardida
ou escarlatina. Mas, diferente de outras meninas, Xuxa foi abusada sexualmente.
Há outras meninas que, como ela, se perguntam por que aconteceu isso? Eu ainda
acho que foi minha culpa. Elas se sentem únicas no segredo e na vergonha.
É preciso dizer a elas que não, a culpa não
foi sua, menina. Não há culpa em carregar um sexo entre as pernas. Não há
vergonha em ser uma menina desprotegida. Na verdade, não existe razão para
temer ser uma menina. Há homens obscenos, fortalecidos por uma cultura patriarcal
que ignora a decência e dignidade das meninas. Há homens que não temem a lei
penal, seguros que estão de sua supremacia na casa e sobre as mulheres de seu
domínio. Nem Xuxa nem as meninas anônimas são responsáveis pelo abuso.
Nem Xuxa nem as mães das meninas anônimas são
capazes, sozinhas, de enfrentar a força patriarcal. Entre sonho e pesadelo, a
voz de Xuxa deve ser poderosa para romper o silêncio masculino da casa. Quem
fala é a rainha dos baixinhos, uma mulher que nunca reconheceu limites para
entrar na casa dos homens.
Fonte: Retirado do
site www.catolicas.org.br em 28 de maio de 2012 às 20h36min.
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