segunda-feira, 23 de abril de 2012

Injustiças Várias: Do Machismo à Ateofobia


Recentemente, o programa “Manhã Maior” da RedeTV! trouxe em sua programação uma história extremamente triste e, sem dúvida alguma, extremamente revoltante. É, em parte, uma história que tornou-se comum nos noticiários brasileiros, tamanho é o machismo arraigado em nossa sociedade: após o rompimento de um relacionamento hetero, o “namorado” não aceita a decisão de sua companheira e pratica atos violentos em consequência disso. Por outro lado, é também um caso que se destaca dos outros pela extrema barbaridade, que envolveu sessões de tortura por duas semanas.



Para evitar aqui o sensacionalismo típico de quem dá essas notícias, é de bom tom adiantar que os planos do rapaz – que afirmava pretender matá-la no dia em que ela completaria 18 anos – falharam e a jovem já está sob cuidados médicos e segura com sua família. O rapaz teve sua prisão decretada e está – esperamos, por enquanto – foragido.     



A reportagem compreende uma entrevista da vítima que dá uma descrição algo detalhada das brutalidades cometidas. Queimaduras, estrangulamento, puxões que chegavam a arrancar os cabelos, mordidas, socos, joelhadas e não menos terríveis que o resto, a ameaça de morte com data marcada para o próximo aniversário da vítima. A brutalidade da tortura fez a vítima emagrecer 10 quilos, bem como tornou necessárias cirurgias para a reconstrução de alguns ossos da face.



É então que, em meio a esse festival de horrores, desse espetáculo do machismo extremo aplicado, a vítima profere a acusação que motiva essa nota. Ela comentava o fato de que ele deixava, para ela ver enquanto ele estava ausente, cartazes com mensagens “positivas” afim de que ela não cometesse suicídio – atitude que, segundo ela, era desnecessária já que ela jamais tiraria a própria vida. A isso segue a acusação: “Ele era uma pessoa… ele era um ateu, né?. Porque quem crê em Deus não faz isso com um irmão, né?”

bulevoador.com.br

A sensação que eu – e acredito poder falar pela gigantesca maioria dos ateus – senti ao ouvir isso foi a de uma extrema injustiça. Ser ateu jamais me tornou mais propenso a cometer violências quaisquer, quanto mais contra namoradas que me deram um “pé-na-bunda”. Aliás, não se pode associar o ateísmo com esse tipo de violência jamais, sendo possível até mesmo o raciocínio inverso – embora, claro, também não seja determinístico – como será dito em seguida. Antes de tudo, porém, é preciso dizer: entende-se que a vítima se encontrava numa situação de extremo mal-estar após um tremendo trauma e não se pretende aqui convertê-la em uma agressora. O foco será a acusação, a associação entre violência (nesse caso especificamente à mulher) e ateísmo, coisa que já foi feita por um “jornalista” conhecido.



Analisando a acusação de uma maneira lógica, podemos afirmar que a conclusão de ele ser um ateu se baseia no fato de que alguém que crê em Deus jamais faria algo tão bárbaro. E, sem sombra de dúvida, essa premissa é absolutamente falsa e isso nos ensina a história. Religiosos fervorosos, em nome da religião, realizaram barbaridades de deixar o mundo todo assombrado: sacrifícios humanos para os mais diversos deuses, guerras “santas”, justificação das maiores injustiças sociais.



Para seguir essa exposição de modo mais coerente, supor-se-á que a vítima se referia ao “Deus” do cristianismo – o que é extremamente provável. E, então, ficam mais fáceis e até mais próximas de nós (no tempo, no espaço e na estrutura social-cultural) as barbaridades cometidas pelos fiéis de tal Deus e no nome dele. A Inquisição, bem sabemos, promoveu torturas desumanas, especialmente de mulheres, em número assombroso. As Cruzadas, guerras cuja justificação moral era religiosa e, ao menos pelo lado europeu, cristã, provocou grandes massacres e desumanidades as mais diversas nas regiões que assolou.



Feita essa lista que não é difícil de traçar, cabe uma descrição do raciocínio lógico que tornaria tal ação, a reação agressiva contra uma mulher que rompe um relacionamento, algo coerente para o agressor. Indubitavelmente isso é feito recorrendo-se a valores machistas: quem “manda” na relação é o homem, diria o machismo estúpido. E, portanto, a mulher não tem o direito de romper o relacionamento quando bem entender. Se ela o faz, isso configura uma transgressão que daria o direito ao “macho” de puni-la severamente por não reconhecer sua autoridade.



À parte dessa descrição do raciocínio, não faltam indícios de que se tratava de uma relação calcada pelo machismo: entrevistada pela apresentadora do programa, a mãe da vítima conta que, quando sua filha perdeu a virgindade, a notícia lhe foi dada pelo rapaz. A própria mãe expressa sua estranheza por esse comportamento, como se a virgindade de sua namorada fosse assunto dele e não mais dela própria. Outro episódio é citado, no qual a jovem iria viajar com a sua mãe para a praia, mas não obteve a permissão do namorado. O caso se resolveu com a mãe da jovem se vendo obrigada a levar o rapaz para a praia também – algo que foi descrito pela mãe como “a pior viagem da vida da gente”. O rapaz não permitia que a jovem usasse biquíni na praia, obrigando-a a ficar o tempo todo “coberta”. Um mero olhar da jovem para o lado era motivo de repreensão por parte de seu namorado, como disse a mãe da jovem acusando-o de ciúme doentio. Mais tarde, a jovem explica que o próprio motivo do término da relação foi esse ciúme excessivo e que, mesmo depois de terminada a relação, ele ainda a vigiava de maneira ciumenta. Tal comportamento a motivou a encontrar-se com ele para tentar acertar as coisas; foi então que se iniciou o cárcere privado e as sessões de tortura.



Dito isso, não há dúvida de que a agressão, motivada pelo ciúme do rapaz, tem um substrato moral baseado no machismo. E, apesar de tal estupidez ter espalhado seus ramos para todos os cantos de nossa sociedade, sabe-se que o cristianismo até hoje concentra uma carga machista de alto grau. Em várias denominações religiosas cristãs o sacerdócio é exclusividade dos homens; em quase todas há a exaltação moral da mulher submissa ao seu marido; há a promoção da posição feminina enquanto dona-de-casa, como aquela que cuida dos filhos, exaltando sua única função como reprodutora; e, por fim, a ideia de que o pecado surge com a mulher, desde o mito de Adão e Eva. Portanto, a acusação de ateísmo ao agressor se revela ainda mais vazia de sentido: os valores que poderiam motivar sua ação deplorável encontram-se frequentemente no seio da religião cristã que domina nosso país.



Provada, então, a falsidade da acusação, é digno repetir que os ateus e todos aqueles que não estão de acordo com a religiosidade dominante não podem permitir que as faltas morais mais diversas sejam atribuídas às suas convicções. É certo de que os ateus em geral se solidarizam com a vítima e certamente sentem uma revolta gigantesca com tal injustiça. Nós, ateus humanistas seculares, nos empenhamos na luta contra o machismo e contra a violência que dele brota. Sentimo-nos – com a maior razão do mundo – ofendidos pela associação que se faz entre nós e as coisas que procuramos justamente combater.



Enfim, apesar de estarmos diante de um terrível episódio de violação dos mais básicos direitos humanos por uma atitude machista, nos serve de conforto saber que um mundo mais justo é possível que nós podemos construí-lo. Olhamos para trás e vemos um passado de muitas barbaridades que, felizmente, acontecem hoje com menor frequência e intensidade. Feito isso, olhamos para frente e vemos – aliás, planejamos – um futuro em que não haja mais opressão à mulher e tampouco preconceito contra aqueles que não creem em Deus. Esperamos, com grande confiança, que tais conquistas futuras andem de mãos dadas com a luta pelo fim do racismo, da homofobia, e de tantas outras besteiras que transformam a fabulosa vida humana numa existência miserável.


Fonte: Retirado do site http://bulevoador.com.br  em 01 de abril de 2012 às 16h32min.

Nenhum comentário:

Postar um comentário