Recentemente, o programa “Manhã Maior” da
RedeTV! trouxe em sua programação uma história extremamente triste e, sem
dúvida alguma, extremamente revoltante. É, em parte, uma história que tornou-se
comum nos noticiários brasileiros, tamanho é o machismo arraigado em nossa
sociedade: após o rompimento de um relacionamento hetero, o “namorado” não
aceita a decisão de sua companheira e pratica atos violentos em consequência
disso. Por outro lado, é também um caso que se destaca dos outros pela extrema
barbaridade, que envolveu sessões de tortura por duas semanas.
Para evitar aqui o sensacionalismo típico de
quem dá essas notícias, é de bom tom adiantar que os planos do rapaz – que
afirmava pretender matá-la no dia em que ela completaria 18 anos – falharam e a
jovem já está sob cuidados médicos e segura com sua família. O rapaz teve sua
prisão decretada e está – esperamos, por enquanto – foragido.
A reportagem compreende uma entrevista da
vítima que dá uma descrição algo detalhada das brutalidades cometidas.
Queimaduras, estrangulamento, puxões que chegavam a arrancar os cabelos,
mordidas, socos, joelhadas e não menos terríveis que o resto, a ameaça de morte
com data marcada para o próximo aniversário da vítima. A brutalidade da tortura
fez a vítima emagrecer 10 quilos, bem como tornou necessárias cirurgias para a
reconstrução de alguns ossos da face.
É então que, em meio a esse festival de
horrores, desse espetáculo do machismo extremo aplicado, a vítima profere a
acusação que motiva essa nota. Ela comentava o fato de que ele deixava, para
ela ver enquanto ele estava ausente, cartazes com mensagens “positivas” afim de
que ela não cometesse suicídio – atitude que, segundo ela, era desnecessária já
que ela jamais tiraria a própria vida. A isso segue a acusação: “Ele era uma
pessoa… ele era um ateu, né?. Porque quem crê em Deus não faz isso com um
irmão, né?”
bulevoador.com.br |
A sensação que eu – e acredito poder falar
pela gigantesca maioria dos ateus – senti ao ouvir isso foi a de uma extrema
injustiça. Ser ateu jamais me tornou mais propenso a cometer violências
quaisquer, quanto mais contra namoradas que me deram um “pé-na-bunda”. Aliás,
não se pode associar o ateísmo com esse tipo de violência jamais, sendo
possível até mesmo o raciocínio inverso – embora, claro, também não seja
determinístico – como será dito em seguida. Antes de tudo, porém, é preciso
dizer: entende-se que a vítima se encontrava numa situação de extremo mal-estar
após um tremendo trauma e não se pretende aqui convertê-la em uma agressora. O
foco será a acusação, a associação entre violência (nesse caso especificamente
à mulher) e ateísmo, coisa que já foi feita por um “jornalista” conhecido.
Analisando a acusação de uma maneira lógica,
podemos afirmar que a conclusão de ele ser um ateu se baseia no fato de que
alguém que crê em Deus jamais faria algo tão bárbaro. E, sem sombra de dúvida,
essa premissa é absolutamente falsa e isso nos ensina a história. Religiosos
fervorosos, em nome da religião, realizaram barbaridades de deixar o mundo todo
assombrado: sacrifícios humanos para os mais diversos deuses, guerras “santas”,
justificação das maiores injustiças sociais.
Para seguir essa exposição de modo mais
coerente, supor-se-á que a vítima se referia ao “Deus” do cristianismo – o que
é extremamente provável. E, então, ficam mais fáceis e até mais próximas de nós
(no tempo, no espaço e na estrutura social-cultural) as barbaridades cometidas
pelos fiéis de tal Deus e no nome dele. A Inquisição, bem sabemos, promoveu
torturas desumanas, especialmente de mulheres, em número assombroso. As
Cruzadas, guerras cuja justificação moral era religiosa e, ao menos pelo lado europeu,
cristã, provocou grandes massacres e desumanidades as mais diversas nas regiões
que assolou.
Feita essa lista que não é difícil de traçar,
cabe uma descrição do raciocínio lógico que tornaria tal ação, a reação
agressiva contra uma mulher que rompe um relacionamento, algo coerente para o
agressor. Indubitavelmente isso é feito recorrendo-se a valores machistas: quem
“manda” na relação é o homem, diria o machismo estúpido. E, portanto, a mulher
não tem o direito de romper o relacionamento quando bem entender. Se ela o faz,
isso configura uma transgressão que daria o direito ao “macho” de puni-la
severamente por não reconhecer sua autoridade.
À parte dessa descrição do raciocínio, não
faltam indícios de que se tratava de uma relação calcada pelo machismo:
entrevistada pela apresentadora do programa, a mãe da vítima conta que, quando
sua filha perdeu a virgindade, a notícia lhe foi dada pelo rapaz. A própria mãe
expressa sua estranheza por esse comportamento, como se a virgindade de sua
namorada fosse assunto dele e não mais dela própria. Outro episódio é citado,
no qual a jovem iria viajar com a sua mãe para a praia, mas não obteve a
permissão do namorado. O caso se resolveu com a mãe da jovem se vendo obrigada
a levar o rapaz para a praia também – algo que foi descrito pela mãe como “a
pior viagem da vida da gente”. O rapaz não permitia que a jovem usasse biquíni
na praia, obrigando-a a ficar o tempo todo “coberta”. Um mero olhar da jovem
para o lado era motivo de repreensão por parte de seu namorado, como disse a
mãe da jovem acusando-o de ciúme doentio. Mais tarde, a jovem explica que o
próprio motivo do término da relação foi esse ciúme excessivo e que, mesmo
depois de terminada a relação, ele ainda a vigiava de maneira ciumenta. Tal
comportamento a motivou a encontrar-se com ele para tentar acertar as coisas;
foi então que se iniciou o cárcere privado e as sessões de tortura.
Dito isso, não há dúvida de que a agressão,
motivada pelo ciúme do rapaz, tem um substrato moral baseado no machismo. E, apesar
de tal estupidez ter espalhado seus ramos para todos os cantos de nossa
sociedade, sabe-se que o cristianismo até hoje concentra uma carga machista de
alto grau. Em várias denominações religiosas cristãs o sacerdócio é
exclusividade dos homens; em quase todas há a exaltação moral da mulher
submissa ao seu marido; há a promoção da posição feminina enquanto
dona-de-casa, como aquela que cuida dos filhos, exaltando sua única função como
reprodutora; e, por fim, a ideia de que o pecado surge com a mulher, desde o
mito de Adão e Eva. Portanto, a acusação de ateísmo ao agressor se revela ainda
mais vazia de sentido: os valores que poderiam motivar sua ação deplorável
encontram-se frequentemente no seio da religião cristã que domina nosso país.
Provada, então, a falsidade da acusação, é
digno repetir que os ateus e todos aqueles que não estão de acordo com a
religiosidade dominante não podem permitir que as faltas morais mais diversas
sejam atribuídas às suas convicções. É certo de que os ateus em geral se solidarizam
com a vítima e certamente sentem uma revolta gigantesca com tal injustiça. Nós,
ateus humanistas seculares, nos empenhamos na luta contra o machismo e contra a
violência que dele brota. Sentimo-nos – com a maior razão do mundo – ofendidos
pela associação que se faz entre nós e as coisas que procuramos justamente
combater.
Enfim, apesar de estarmos diante de um
terrível episódio de violação dos mais básicos direitos humanos por uma atitude
machista, nos serve de conforto saber que um mundo mais justo é possível que
nós podemos construí-lo. Olhamos para trás e vemos um passado de muitas
barbaridades que, felizmente, acontecem hoje com menor frequência e
intensidade. Feito isso, olhamos para frente e vemos – aliás, planejamos – um
futuro em que não haja mais opressão à mulher e tampouco preconceito contra
aqueles que não creem em Deus. Esperamos, com grande confiança, que tais
conquistas futuras andem de mãos dadas com a luta pelo fim do racismo, da
homofobia, e de tantas outras besteiras que transformam a fabulosa vida humana
numa existência miserável.
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